terça-feira, 31 de maio de 2011

Remanescentes (re-edição) II




Para todo artista que trabalha com o palco o primeiro contato é pura euforia. O nervosismo vem à tona até quando não há público, é o puro êxtase se estar no palco. Imaginar os olhos, os gritos, os aplausos até que eles se tornem bem reais, e finalmente todos os seus medos não existem mais. O palco vira o seu lugar favorito; aquela sensação única e viciantes parece nunca acabar e mesmo quando já se está nos bastidores, quando se volta pra casa, antes de dormir... a mesma sensação lateja na cabeça. É como se aquilo nunca tivesse um fim, a vontade é de repetir a dose. Mas então es que as cortinas se fecham, e a promessa de que outrora voltaram a se abrirem já não existe. A sombra de perder algo é desesperador. Saber que aquilo nunca mais irá se repetir traz à tona todos os medos que o palco havia deixado pra traz. Então veja-se. Observe-se sem público ou palco. Será capaz de viver sem os aplausos? Será capaz de interpretar o maior monólogo de sua vida? Pois bem, seja bem-vindo à realidade. Seu palco não existe mais e, agora, é preciso encontrar o chão.





Nunca gostei de hospitais. Aquele cheiro que fica no ar, não sei bem se é de remédio ou se é algum desinfetante, sempre me deu náuseas. Eu já estava ali há algumas horas, a mãe de Helena me disse algumas coisas, mas sinceramente tudo que me falava soava grego. Quando alguém citava o nome de minha Helena chegava a acordar do meu estado vegetativo, mas logo descobria que ainda não poderia vê-la. Médicos entravam, médicos saiam... Todos com o mesmo ar de 'não conseguimos'. Apesar de estar físicamente ali, minha mente estava longe. Não pensava em absolutamente nada. Meu olhar era fixo, congelado, vazio.

Ao fundo ouvia a mãe de Helena repetir a mesma trágica história milhares e milhares de vezes, e até mesmo quando ela já não estava falando, a história se repetia em minha cabeça.

Eu podia sentir cada detalhe da respiração da minha deusa, seu susto ao ver o outro carro. Podia sentir o calor dos faróis, sentia o impacto da batida. Podia ouvir as sirenes, ouvir os médicos. Olhos entre abertos me faziam ver meio rosto de um médico, meia sala de cirurgia, meia esperança de ainda ter vida.

- Richard

Virei-me, era meu irmão. Ele me conhecia o suficiente pra saber que nada do que ele falasse seria ouvido ou surtiria efeito. Conhecia-me o suficiente pra saber exatamente o que eu precisava.
- Levanta. - Ignorei-o.

- Richard, levanta.
- Pra quê? - Minha voz soou fraca.

- Levanta logo.
Levantei-me como quem carrega um monte nas costas, minhas forças já tinham ido embora há tempos.

- Venha aqui. - Obedeci como que um robô.

Ele me abraçou. Abraço forte, de quem carrega o outro.

Desabei, não tinha outro jeito. Estava atônico à tudo que me envolvia até aquele momento. Só meu irmão sabia o quanto eu precisava desabar.

Ele me obrigou a comer, coisa que eu não fazia por quase 12 horas. De tempos em tempos alguém trazia novas noticias. Meu irmão filtrava as informações e só me passava as boas noticias tentando me animar.

- Lamento, mas não podemos fazer mais nada. Agora é só uma questão tempo.

Apesar de minha cabeça viajar, ouvi cada uma dessas palavras vindas de um médico. O fitei em quanto ele as pronunciava. Parecia experiente, bem capaz de salvar minha vida. Mas ele não o pôde fazer.

- Rick, você já pode vê-la.

Alguém me disse, apalpando-me os ombros.

Só então que, de fato, acordei. Meu irmão me parou, deu um jeito na minha cara abatida e disse pra eu parecer feliz. Aquilo me era impossível, mas no fundo fazia sentido.

Respirei fundo e abri a porta.


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Aparelhos sem fim, máquinas, barulhinhos infinitos. Em baixo de tudo aquilo estava minha ninfa. Minha vontade era de arrancar-lhe tudo aquilo , pegá-la no colo e correr as gritos e lágrimas desesperadas até alguém que a pudesse salvar, e sinceramente me vi fazendo isso. Mas lá estava eu, parado, ainda à porta, congelado, olhando para ela. Andei passo contado por vez. Devagar, respirando fundo pra não chorar. Me sentia tão garoto, tão chorão. Não lembrava da última vez que havia chorado, mas desde que tive a notícia o fazia sem perceber a todo tempo.

Incrivelmente estava acordada, mas sem forças pra falar. E não o tentou. Acariciei seu rosto machucado e pude sentir a paz que estar ao seu lado me transmitia, e depois de algum tempo dei por mim que estava prestes a perdê-la. Até aquele momento ainda não tinha caído a ficha, eu estava preocupado com ela, mas só ali, só naquela hora entendi que não tinha mais jeito. E devo ter deixado isso bem claro em minha expressão porque senti uma lágrima rolar dos belos olhos da minha vida. Não aguentei mais e voltei a chorar.

Ali ficamos, um do lado do outro, sem dizer nada. O silêncio mais gritante de nossas vidas. Abracei-a na medida do possível, com muito cuidado pra não machucá-la e fiquei ali, decorando seus últimos suspiros, a cor do seu cabelo contra o Sol, os desenhos de sua íris, o formato de sua boca, seu cheiro. Acordei de mim, olhei pra ela. Estava dormindo, lindo anjo.

Meu olhar havia se congelado no meu anjo adormecido, e só acordei quando me arrancaram dela, e só então que notei os médicos correndo no quarto. Demorei pra entender o que estava acontecendo. Não entendi muito bem até hoje. Pra mim, a minha ninfa ainda dorme, linda como sempre, tão linda. Como poderia viver enquanto ela dormia?


Não me ensinaram isso, não me ensinaram a esquecer o que se ama, ninguém me explicou como doía, ninguém nunca me disse que eu nunca iria entender que ela não existe mais, ninguém me avisou, ninguém!

Injustos! Me deram para tomá-la de mim assim?! Como pode? Por que comigo?

Lembrente: Respire. Nunca pensei que teria que me lembrar de fazer isso.

Jamais imaginei que haveria vida sem ela.